Plano de saúde é obrigado a cobrir cirurgia de redesignação sexual

Plano de saúde é obrigado a cobrir cirurgia de redesignação sexual

O juiz convocado da 11ª Câmara Cível do Tribunal de Justiça de Minas Gerais (TJMG), Narciso Alvarenga Monteiro de Castro, determinou que a Sul América Companhia de Seguros e Saúde providencie a cirurgia de redesignação sexual de uma mulher trans, sob pena de multa diária de R$ 500, limitada a R$ 20 mil. O plano havia negado o procedimento com a alegação de que o procedimento não consta no rol de cobertura da Agência de Nacional de Saúde Suplementar (ANS).

A beneficiária ajuizou pedido de tutela antecipada para que o plano cobrisse os procedimentos de mudança de sexo. O juiz de 1ª Instância postergou a decisão até que a empresa se manifestasse nos autos, o que fez a mulher ajuizar um agravo de instrumento no Tribunal de Justiça, questionando tal decisão. 

De acordo com o relator do processo no TJMG, todos os procedimentos requeridos para a cirurgia de redesignação sexual, como amputação total, orquiectomia, reconstrução perineal com retalhos miocutâneos, neolagina (cólon delgado, tubo de pele) e enterectomia por videolaparoscopia, fazem parte do rol de cobertura da ANS. Assim, para Castro, a recusa do plano de saúde em realizar a cirurgia é ilegal.

“De fato, constava-se que todos os procedimentos necessários à
realização do procedimento cirúrgico do qual necessita, encontram-se inseridos no Anexo I do Rol de Procedimento e Eventos em Saúde (RN 465/2021, vigente a partir de 01/04/2021) da ANS”, escreveu Monteiro de Castro.

Na visão do juiz, a mulher comprovou, por meio de laudos médicos e relatórios psiquiátricos, que seu gênero é feminino, apesar de ter nascido em corpo masculino.

“Inobstante o procedimento cirúrgico para redesignação sexual não se trate de conditio sine qua non para que a agravante seja reconhecida como uma mulher trans (pois de acordo com seu gênero ela já o é), a adequação do sexo biológico (genitálias) ao seu gênero feminino lhe assegurará o respeito aos direitos fundamentais, à saúde e à dignidade da pessoa humana, permitindo, inclusive, que deixe sofrer por estranhar o próprio corpo”, concluiu o magistrado.

Taxatividade x literalidade do rol

Vitor Boaventura, advogado especialista em Direito do Seguro e do Consumidor, sócio de Ernesto Tzirulnik Advocacia, explica que a decisão em questão mostrou que além da taxatividade do rol, os planos de saúde querem defender a  literalidade do rol.

“Ao que consta na decisão, a redesignação sexual é um conjunto de procedimentos que resultam na mudança de sexo e o magistrado entendeu que cada um desses procedimentos isoladamente considerados constam no rol. Ou seja, muito embora não esteja escrito literalmente no rol cirurgia de redesignação sexual, os procedimento médicos que no seu conjunto resultam na redesignação estão”, explica.

Para Boaventura, se os procedimentos aplicados ao tratamento estão abarcados pelo rol, a seguradora deve oferecer cobertura.

“Essa negativa dos planos é errada, porque a redesignação sexual é um tratamento médico. Os indivíduos que se submetem a mudança de sexo o fazem por uma condição de saúde e não por algo intencional. A pessoa tem uma orientação de gênero que é diferente do seu sexo biológico. Nós precisamos, enquanto sociedade, prover os meios para que isso aconteça e se ela tem um plano de saúde contratado e uma prescrição médica para realização do procedimento, razão não há para que as seguradoras neguem essa cobertura”, salienta o especialista.

Mérces Nunes, advogada especialista em Direito Médico com mestrado e doutorado pela Pontifícia Católica de São Paulo (PUC -SP), comenta que a cirurgia é o último ato da redesignação sexual e que antes existe toda a parte de hormonioterapia e o acompanhamento médico e terapêutico. Segundo ela, não é coerente o paciente começar um tratamento e ter que interrompe-lo no meio do caminho “porque o rol é taxativo e a cirurgia não está prevista”. 

“O procedimento como um todo envolve muito mais do que só a parte física da pessoa. É um conjunto, na verdade, a pessoa precisa ter identidade psíquica e física integradas. É uma cirurgia de adequação da pessoa à própria identidade. Se o plano de saúde não aceitar [fazer o procedimento], a pessoa pode entrar com a ação e tem grande possibilidade de vitória no Judiciário”, afirma Nunes

Segundo a advogada, a chance de ganho de causa na Justiça se deve ao fato de a nossa Constituição ser voltada para a proteção da dignidade da pessoa humana. “Ficar na literalidade da norma é não olhar o contexto jurídico que nós temos. O contexto começa com a proteção e reconhecimento da dignidade da pessoa humana”, destaca Nunes.

Jurisprudência dividida

Já Léo Rosenbaum, advogado especializado na área de Saúde, da Rosenbaum advogados associados, afirma que há uma divergência na jurisprudência, já que os procedimentos para a realização da redesignação sexual estão previstos no rol, mas o nome específico não está.

“Tem juízes que concedem e tem tribunais que entendem que se não está previsto no rol, o plano não deve cobrir.  Essa questão é discutida processo a processo e não existe uma verdade sobre isso. Vai de juiz para juiz, eles não são obrigados a seguir o julgamento do STJ, inclusive porque não é uma decisão que foi feita em recurso de repercussão geral”, explica Rosenbaum.

Boaventura destaca ainda que o rol de procedimentos passa por sucessivos ciclos de atualização e é possível que novas tecnologias e tratamentos de saúde sejam incorporados a ele. “As entidades da sociedade civil tem que fazer pressão para que os procedimentos de redesignação sexual sejam introduzidos ao rol, justamente para evitar que essa literalidade, já que todos os tratamentos para a mudança de gênero estão no rol”, conclui.

Em nota, a Associação Brasileira de Planos de Saúde (Abramge) alertou para a importância da segurança jurídica dos contratos e do respeito às leis e normas. “Em um país continental como o Brasil, as diversas demandas judiciais podem ter decisões divergentes conforme avaliação do magistrado e do tribunal. Daí a importância das decisões em instâncias superiores consolidando entendimentos e trazendo maior segurança jurídica aos jurisdicionados e ao sistema como um todo”.

Para alcançar decisões mais uniformes e técnicas, prossegue a Abramge, é “fundamental a ampliação dos serviços oferecidos pelos Núcleos de Apoio Técnico do judiciário (NAT-JUS), onde os magistrados podem solicitar apoio a um corpo técnico capacitado em questões envolvendo a saúde”. A Sul América também foi procurada pelo JOTA, mas decidiu não se pronunciar.

Rol da ANS

Em junho, o STJ decidiu que o rol da ANS é taxativo, com algumas exceções. O que significa que os planos de saúde são obrigados a oferecer a seus clientes os procedimentos e tratamentos previstos na lista feita pela ANS. O que estiver fora da relação, não tem garantia de cobertura.

No entanto, a Câmara dos Deputados aprovou um projeto de lei (PL 2033/2022) que trata da cobertura de procedimentos não previstos no rol. Segundo o texto, tratamentos que estão fora do rol devem ser cobertos pelos planos de saúde desde que exista comprovação de eficácia, a partir de um desses critérios: recomendação da Comissão Nacional de Incorporação de Tecnologias (Conitec) no Sistema Único de Saúde (SUS); autorização da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa), ou recomendação de, no mínimo, um órgão de avaliação de tecnologias em saúde com renome internacional, como a americana FDA. O projeto agora será analisado no Senado.

Nunes explica que a diferença entre o que foi decidido no STJ e o que foi aprovado na Câmara é que para aprovar um procedimento excepcionalmente não será necessário cumprir cumulativamente uma lista de requisitos, estando de acordo com apenas um dos requisitos já será suficiente. “Com a promulgação desse projeto de lei, os planos de saúde vão ficar sem justificativa para negar uma cirurgia de mudança de sexo, por exemplo”, comenta a advogada.

Fonte: JOTA.INFO

Equipe Fernando Padilha Adv

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